Resumo: Um aspirante a ator passa por um procedimento radical para transformar sua aparência. Mas seu novo rosto dos sonhos logo se transforma em um pesadelo e ele se torna obcecado em recuperar o que perdeu.
Ei, rabitter! Voltamos pra falar de cinema — e dessa vez com uma masterpiece que tá lá no MUBI. A Different Man é daquelas obras que te exploram a fundo, porque fala justamente sobre aquilo que a gente mais aprende a odiar em nós mesmos: o desejo desesperado de ser aceito. Hoje, com as redes sociais, aceitação virou sinônimo de normalidade. Estar fora dela é quase ser invisível, um apagamento simbólico — como se não ter um perfil fosse o mesmo que não existir. Nesse cenário, a presença virtual ganhou o peso da existência física. A quantidade de seguidores, os likes, os comentários viraram uma medida de valor pessoal. E nesse jogo cruel, a perfeição encenada virou a nova moeda de pertencimento.
Inseridos em um modelo de beleza socialmente construído, passamos a moldar nossos corpos — afinamos o nariz, alongamos os cílios, preenchemos lábios — não apenas por autoestima, mas como resposta a um padrão imposto pela cultura em que vivemos. Essa busca não é natural, tampouco neutra: é fruto de uma lógica que transforma a aparência em valor social e a perfeição estética em objetivo de vida. Se estivéssemos em outro contexto — como no interior da floresta, entre povos originários, o “belo” teria outro significado, e procedimentos como bichectomia, botox ou tintura de cabelo simplesmente não fariam sentido. A obsessão pelo corpo perfeito revela menos sobre desejo individual e mais sobre uma cultura que transforma o visual em moeda de pertencimento e reconhecimento.
Pois, bem, vamos para o filme? O personagem Edward, marcado pela neurofibromatose, traz à tona uma reflexão profunda sobre a construção da identidade e a relação entre o eu e o outro. Sua dificuldade em se aceitar e a constante busca pela validação alheia revelam o impacto social e psicológico que as diferenças estéticas impõem em indivíduos rotulados como “outros”. Edward não é apenas um homem com uma condição genética rara, ele representa uma ferida aberta na sociedade contemporânea, que ainda lida de forma superficial e mercadológica com a diversidade.

O fato de Edward atuar em uma propaganda sobre aceitação, mas viver uma experiência pessoal de exclusão e medo, evidencia o hiato entre discurso e prática. A aceitação de “pessoas diferentes” muitas vezes permanece restrita ao plano simbólico, usado para marketing e visibilidade, mas raramente ultrapassa a barreira da empatia genuína e do reconhecimento da alteridade em sua complexidade. Essa contradição expõe a hipocrisia de uma sociedade que quer se mostrar inclusiva, mas que ainda define padrões rígidos de beleza e normalidade.
Edward vive sob o peso do olhar do outro, um olhar que o objetifica e o reduz a um estigma, condicionando sua autoestima e sua existência. Seu medo de ser tocado ou amado é também um medo de vulnerabilidade, de expor uma identidade que ele mesmo mal conhece, aprisionado pela neurose do julgamento social. Essa dinâmica nos leva a questionar até que ponto a construção do eu está atrelada à alteridade e como as estruturas sociais podem aprisionar e limitar a emancipação individual.
Assim, o filme não apenas narra a trajetória de um homem marcado pela neurofibromatose, mas promove uma crítica contundente ao modo como a diferença é tratada culturalmente: como espetáculo, como marketing ou como ameaça à ordem estética vigente. A história de Edward é um convite para repensar o que significa aceitar, conhecer e amar o outro – não apesar das diferenças, mas justamente por causa delas.

Com base nas ideias de Byung-Chul Han, A Different Man (2024) revela-se uma crítica profunda à lógica da aparência e da autoexploração que rege nossa era digital. Edward, ao reconstruir sua face, não busca apenas transformar seu corpo, mas adequar-se a um ideal socialmente aceito de visibilidade e pertencimento — exatamente como os sujeitos das redes sociais, que performam versões idealizadas de si em busca de reconhecimento. Tanto, que ele nega seu “eu” antigo, propõe um novo começo e se torna Guy, um homem cuja distinta aparência se afasta daquele Edward que ele nega, que ele quer esquecer.
No entanto, ao alcançar essa nova aparência, ele não encontra libertação, mas apagamento: a perfeição o torna invisível, substituível, irrelevante. Como nos adverte Han, o sujeito contemporâneo não é mais reprimido por forças externas, mas seduzido por uma liberdade que exige constante exposição, autocontrole e vigilância estética. Edward encarna, assim, o drama do “eu” que se torna mercadoria — e desaparece no processo.
No universo hipervisível das redes sociais, onde o ser é reduzido ao parecer, A Different Man escancara a violência silenciosa da estética como norma. A transformação física de Edward funciona como alegoria da construção de um “eu digital”: bonito, aceito, mas esvaziado de verdade e história.
A sociedade da transparência, como descreve Han, não tolera a negatividade, a dor, a diferença — ela exige positividade, leveza e sucesso contínuo. Assim, ao tentar se enquadrar nesse molde, Edward perde o direito ao próprio fracasso, ao sofrimento, à alteridade que o constituía. Sua tragédia não está na deformidade que abandona, mas na perfeição que o devora. O filme, portanto, é menos sobre mudança e mais sobre o preço brutal de desejar ser aquilo que aprendemos a amar nos outros — e odiar em nós mesmos.

O filme toma um novo contorno quando Guy descobre que Ingrid escreve uma peça “homenageando” Edward, ele a persegue devido ao interesse romântico, vai até o Teatro e a impressiona com sua performance como Edward, usando a máscara que fizeram para ele, com exatas proporções de seu rosto. Ela fica não só interessada amorosamente por ele, mas o elencou para a realização da peça.
Enquanto Guy, o personagem, experimenta o que antes era impossível para ele, sua sexualidade, a sociabilidade e até mesmo o amor. Sua aparência o levou ao sucesso enquanto corretor de imóveis e até mesmo o possibilitou participar da peça. Ele mantém uma relação com Ingrid enquanto Guy e sua persona escondida Edward, contudo, a visão de Ingrid sobre Edward é limitada às pequenas vezes que se encontraram. Esse segredo que ele carrega não só o sufoca, mas traz à tona seus medos mais íntimos quando aparece Oswald, um ator com neurofibromatose, engajado, simpático, sem medo de julgamento pela sua aparência, o exato oposto de Edward.

Aos poucos, Oswald vai ocupando os espaços que Edward gostaria de habitar, ‘tomando’ para si a vida de Edward e tudo aquilo que Guy valoriza, como Ingrid, a peça e até mesmo seu antigo apartamento. Sua obsessão por Ingrid se intensifica, assim como o medo de perder o papel que representa a própria narrativa de sua vida e aquilo que tudo desejou. Esse processo o conduz a um estado crescente de loucura. A inveja e o ciúme do sucesso de Oswald o levam à ruptura e a invadir a peça que fazia tanto sucesso sobre sua vida, mas sem sua presença. Ornamentos da estrutura da peça caem sobre sua cabeça, ele fica debilitado e vai morar com Ingrid e Oswald em seu antigo apartamento.
No final, Edward entra em uma espiral de loucura extrema. Ao observar a aproximação entre Oswald e Ingrid — agora grávida dele —, tenta imitá-los, buscando retomar ou ao menos se reinserir na própria história, que lhe escapa. No entanto, seu novo corpo, fruto de uma transformação estética radical, já não lhe concede legitimidade para ser quem era. A obsessão o consome. Ele esfaqueia o fisioterapeuta após este criticar a vida de Oswald e Ingrid, e acaba preso. A cena final o mostra deixando a prisão, mas sem redenção: o colapso de sua identidade, construída sobre a aparência e a busca pela validação do outro, é completo. Edward se tornou um estranho para todos — inclusive para si mesmo.
A Different Man (2024) mergulha de forma brutal e sensível na ilusão moderna de que é possível reconstruir a identidade a partir da aparência. Ao acompanhar a trajetória de Edward — ou Guy — o filme evidencia o abismo entre quem somos e quem desejamos ser sob o olhar social. Mais do que sobre neurofibromatose ou padrões estéticos, trata-se de uma crítica feroz à lógica contemporânea de visibilidade, onde o corpo se torna passaporte para o afeto, o sucesso e a aceitação. Guy, ao tentar possuir o amor, o papel, a vida que a sociedade lhe negava, se perde na mesma estrutura que o marginalizava: ele troca a exclusão pela invisibilidade. No fim, seu novo rosto não lhe dá liberdade, mas o exila da própria história, mostrando que o preço de ser quem não somos pode ser o esquecimento de quem realmente éramos.
Nota: 4/5