Naruto e a pedagogia do oprimido

Se você e novo aqui no blog, talvez nunca tenha ouvido falar no anime Naruto, mas os leitores já viram citações e referências a essa obra em vários outros posts meus. Não é segredo para ninguém que eu sou bastante fã da obra de Kishimoto. Em 2017, Naruto se tornou a terceira série de Mangás mais vendidos no mundo. Mas o que torna essa obra tão envolvente que faz ela transcender o gênero comum de mangás para adolescente conhecido como Shonen. O gênero Shonen e facilmente reconhecido pelo traço mais rachurado e grosso, dando assim mais fluidez e ação as cenas, o que encaixa perfeitamente com os temas que são as lutas. Os Shonen geralmente são histórias onde existe um personagem que vai ficando mais poderoso ao longo da trajetória, o gênero é focado no público adolescente de 12 a 18 anos. São alguns Mangás considerados do gênero Shonen exemplos: Cavaleiros do Zodíaco, Dragon ball Z, Yu-Yu Hakusho, Yu-gi-oh, Hunter x a Hunter, Samurai X , Bleach, Demon Slayer, JoJo’s Bizarre Adventure, One piece, Full metal alchemist, The Seven Deadly sins.

Que Naruto é focado em lutas de Ninjas com técnicas poderosas e criaturas místicas, um leigo pode imaginar. Mas o sucesso do mangá e do anime com toda certeza se dá pela forma como a história e desenvolvida. A história começa com Naruto, um garoto órfão em uma prestigiada Aldeia Ninja. Ele não sabe, mas seus pais morreram quando ele era um bebê. Eles se sacrificaram para salvar sua aldeia selando a poderosa e temida raposa de nova caudas_ uma criatura mítica que quase destruiu toda a aldeia. Então sem conhecer os pais e sem saber que a raposa de nove caudas estava selada dentro dele, Naruto cresce sendo odiado por todos, e sendo tratado com exclusão e desdém. Na escola a maioria dos seus colegas riam e debochavam dele então ele entendia que para ganhar a tão desejada atenção ele tinha que fazer traquinagens como pichar, por exemplo, o monumento do rosto dos Hokages (Hokage é o líder da vila, o título mais alto entre a hierarquia de comando dos ninjas de uma aldeia.)

Sempre sendo subestimado e excluído, Naruto então decide que vai se tornar o maior ninja da aldeia para então ser reconhecido e amado por todos. Ao longo do anime com esforço, dedicação e amigos, é claro Naruto vai superando todos os obstáculos colocados em seu caminho e a cada oponente ele não só conquista o respeito dos outros ninjas de sua vila mas também até dos inimigos. A temática da solidão e da tristeza é bastante presente na série. Alguns personagens têm traumas e frustrações bastante similares a que nos vivemos no mundo real, como ser excluído porque se é gordinho, ou ser considerado fracassado por não se destacar no sistema. O autor Kishimoto desenvolve com profundidade os personagens secundários, criando assim uma fácil conexão e aceitação traumas e obstáculos enfrentados pelos personagens secundários, Naruto e inclusive os vilões da história, deixando os assim mais complexos e mais humanos. É possível ver motivações palpáveis nos vilões. Essa mistura de superação de traumas profundos com lutas de tirar o fôlego, tornam Naruto um mangá inspirador para todos os jovens e crianças que o assistem. Como não amar um dos bordões do nosso ninja cabeça oca numero um?! ” Eu nunca desisto, esse é meu jeito ninja de ser!”

O anseio de ser amado

Após assistir Naruto várias vezes eu me perguntei porque é uma obra da cultura pop tão inspiradora? Como o autor conseguiu captar as emoções dos leitores de forma tão intensa? A resposta a que cheguei parece ir na contramão da obra. O capitalismo é um sistema de fluxo constante, para que ele funcione as pessoas precisam movimentar o sistema. Precisam trabalhar, ir na academia, gravar tik toks, precisam comprar roupas, sapatos, precisam assim como o sangue circular no sistema para ele continuar existindo. Esse sistema só interessa que você se mova, não importa para ele sua motivação, ele só quer que você o movimente. Seja pela sobrevivência ou pela busca da aceitação dos outros. Todos queremos ser amados, e admirados pelos outros, é justamente ai que o sistema te fisga, ele te faz invejar os outros e odiar a si para que você na tentativa de mostrar para os outros o quão amável você é, ele te faz trabalhar, ir na academia, estudar, ir em festas, comprar objetos de luxo. O quão importante você consegue ser depende de uma aprovação que fica condicionada no outro, nas curtidas das redes sociais, no tratamento e no interesse dos outros por você.

Somos movidos incessantemente pelo desejo, pela apreciação do outro, validando assim o nosso eu. Perpassando essa explicação, entendemos de onde vem o desejo ardente de Naruto em ser reconhecido por sua aldeia, ao se tornar Hokage, Naruto estaria não só superando todos os obstáculos e preconceitos que enfrentou quando criança, mas também provando ser digno de respeito e admiração de todos. Assim como Naruto, os outros personagens também passam pelas mesmas angustias, e pelas mesmas provações que o protagonista. Quanto mais Naruto supera suas provações, mais ele se torna um símbolo para eles e os ajuda a superar as suas dores, tornando -se um processo que se retroalimenta. O mundo de Naruto não é muito diferente do nosso, podemos enxergar mazelas, doenças, frustrações, e anseio de ser amado por todos os lados. E essa conexão entre o Mangá e o Mundo real que torna a obra tão intensa e emocionante de ser vivenciada. Então eu lhe pergunto porque superar seus obstáculos e nos tornarmos mais resilientes é algo ruim? Em que ponto isso pode ser prejudicial a nós como sociedade?

A pedagogia do oprimido

Paulo Freire, brasileiro, pernambucano e um dos mais célebres educadores do mundo escreveu:

‘Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor’. Para Freire, a nossa educação apenas deposita a informação no indivíduo ao invés de fazê-lo emancipar-se como cidadão ativo da sociedade. E quando a educação não é humanitária, ela apenas transforma os indivíduos em agentes reprodutores do sistema que os oprime. Se não fazemos do uso da reflexão e do senso critico, nossos desejos dentro do sistema é almejar uma posição mais alta para obtermos reconhecimento dos outros. O sonho do pobre torna-se em ascender social e financeiramente e nisso ele reforça estruturas e comportamentos errados que o machucaram, que o frustraram porque em sua mente isso é natural e ele só se tornou quem é porque passou por aquele sofrimento. Eu já vi uma vez um operário de uma indústria dizendo que o sonho dele era ganhar na mega sena para comprar a fábrica e assim devolver na mesma moeda todo sofrimento que ele passou com os chefes dele. Não é preciso que a pessoa queira se vingar como o funcionário no caso acima, mas apenas o fato de querer reconhecimento baseado num status social já coloca o indivíduo na mesma posição do Naruto, por exemplo.

É errado querer ascender social e financeiramente? De forma nenhuma! Querer dar condição de vida melhor a si e a sua família é normal, mas é preciso que se faça uma reflexão constante sobre o que consumimos e o que estimulamos do contrário somos apenas parasitas se reproduzindo consumindo os recursos do planeta e repassando adiante esse comportamento aos nossos descendentes.

O sucesso de Naruto então é explicado por Freire. Na condição de excluído Naruto não vê outra alternativa para provar seu valor e ser amado se não ascender no sistema que o machucou. As histórias que vemos no dia a dia de pessoas pobres , vindas da lama, que venceram na vida e fizeram fortuna ou fama não é diferente da história de Naruto.

O capitalismo nos ensina amar o sofrimento, a romantizar a miséria, a estar sempre firme, acreditando que uma hora vamos vencer os obstáculos. Nós aprendemos a romantizar, bater em nossos filhos, porque foi isso que nos deu” caráter”, nos aprendemos a romantizar quem trabalha em jornada tripla, porque essa pessoa é uma” guerreira”. Não, não precisamos reproduzir os comportamentos ruins achando que eles é que são a fórmula do sucesso para a ascensão social e assim ser amado pelos outros.

Vemos todos os dias casos de Coachs ou de palestrantes motivacionais

Naruto poderia se tornar um grande ninja se tivesse sido auxiliado desde criança! É por termos auxilio que nos tornamos grandes, os grandes gênios da humanidade só conseguiram desabrochar seu potencial ao máximo porque estavam no lugar certo, na hora certa e com os recursos suficientes e apoio para que pudessem fazê-lo. Pare de romantizar o sofrimento, pare de glorificar a miséria e a dor, sim, nos podemos aprender com isso, mas não precisamos passar obrigatoriamente por dor e sofrimento e justamente esse o objetivo de estudarmos e progredirmos.

O tubarão no tanque

Profissionais de Coach e palestrantes usam muito a metáfora do tubarão no tanque para motivar as pessoas, vou contar aqui essa história ridícula. Reza a lenda que, pescadores japoneses para conseguir pegar seus peixes tinham que ir cada vez mais longe da costa. E a essa distância toda, os peixes parados desenvolviam uma toxina, que deixava a carne deles ruins e impropria ao consumo. Então os pescadores têm a brilhante ideia de colocar um tanque com um tubarão dentro do navio, onde eles colocariam os peixes pescados dentro. O tubarão os faria correr e se movimentar, evitando assim desenvolverem a toxina. A moral da história que os motivadores usam é: “O tubarão é seu sofrimento, ele é seu desafio, é ele que o mantém em movimento e faz você alcançar grandes distâncias. Ponha um tubarão no seu tanque” Não é preciso ter muito cérebro para perceber que não tem nada de bom para os peixes serem colocados com um tubarão num tanque. Mesmo que fosse viável um navio pesqueiro carregar um tanque de água com um tubarão nadando dentro, o que por si só já é estúpido! Voltando ao ponto dos peixes, alguns iriam morrer sendo lanchinho do tubarão, e os que sobrevivessem a essa maravilhosa viagem iriam pasmar, como recompensa virar sushi! O mundo progride e não precisamos ficar sem eletricidade para darmos valor a uma noite a luz das estrelas! Não precisamos parar de andar de carro para nos locomovermos a pé apenas para fazer exercício físico. Caso aconteça percalços ou sofrimento, nos podemos sim tentar extrair algo de proveito daquilo, mas é um enorme contrassenso romantizar o sofrimento achando que é apenas por ele que evoluímos. A única forma de formarmos pessoas com capacidade de questionar esse paradigma é educando-as, dando a elas ferramentas para poderem sempre tomar decisões por si mesmas, dando embasamento para poderem sempre se perguntar: afinal eu preciso mesmo de um tubarão no meu tanque? A resposta dada assistindo Naruto é que não. Questione-se sempre e não reproduza comportamentos e ideias estúpidas, não se torne aquilo que lhe feriu!