Olá, meus queridos leitores deste blog, a quem chamo carinhosamente de Rabbiters! Como vão vocês? Eu vou manter uma frequência maior de posts para que tenhamos sempre assuntos para conversar. O post de hoje nasceu de uma conversa com uma amiga novinha. Uma jovem muito inteligente, que é filosofa e, conversando com ela, surgiu a ideia deste post. Deixo a ela meu obrigado, Mini Naty <3.
A arte imita a vida
A partir dos mais variados temas, é possível reflexionar e extrair deles a mais profunda filosofia. Às vezes um desenho animado, uma tirinha, ou uma simples fábula contêm mensagens de sabedoria ou reflexões de uma vida inteira. É preciso ser um observador atento e olhar além da camada superficial das coisas para alcançar sua essência.
Para ilustrar isso que afirmo, existe a obra perfeita: The Matrix (1999). Matrix é um desses filmes que é muito mais do que a primeira camada apresenta. Se fosse apenas a questão do roteiro, dos efeitos especiais avançadíssimos para a época ou da temática Cyberpunk, o filme por si só já é magnífico. Mas ele vai muito além disso: o filme quebra a quarta dimensão e fala sobre si mesmo, sobre “escorregar pela toca do coelho e descobrir o país das maravilhas”. Uma das referências óbvias do filme é o Mito da Caverna de Platão. O mundo das sombras projetadas na parede seria Matrix — um mundo ilusório criado para nos manter prisioneiros sem saber a verdade. E o mundo real seria o mundo pós-apocalíptico onde humanos estão lutando contra máquinas numa guerra centenária e inglória.
Quando assisti o filme pela primeira vez, ele me ganhou logo de cara. Eu tinha nove anos e nunca tinha visto algo próximo disso. O que mais me surpreendeu foi que várias pessoas nunca entenderam nada do filme. Na época, um amigo do meu tio, que devia ter aproximadamente uns 30 anos, comentou comigo: “Esse filme é horrível, prefiro os filmes do Steven Seagal, não tem essa baboseira de máquinas controlando o mundo, e tem mais pancadaria!”. Ele realmente acreditava que a mensagem do filme era que vivíamos em uma realidade controlada por máquinas num futuro pós-apocalíptico e aquilo, por ser muito distópico, parecia idiota para ele. Certamente isso explica o gosto dele por filmes testosterona dos anos 90.
Matrix nunca se tratou de um futuro pós-apocalíptico controlado por máquinas, onde humanos travam uma guerra contra elas, embora seja um tema legal de ser debatido entre nerds bêbados! Na realidade Matrix, são abordadas várias correntes filosóficas e espirituais que vão desde Espiritualismo/Budismo à desconstrução do capitalismo e até mesmo ao Existencialismo. O filme fala sobre um despertar de consciência, um vislumbre de um sistema rígido controlador a que estamos presos — sistema esse que é a prisão perfeita. Qual seria a prisão perfeita? Aquela em que não sabemos que existe, pois assim nunca se tenta escapar! Essa prisão é explicada através da metáfora da Matrix, uma simulação virtual de um mundo do final do século XX, em que as pessoas trabalham, vão à igreja, transam, comem boas refeições, pagam impostos, compram e festejam. As pessoas não têm consciência deste sistema, e estão tão embriagadas, tão profundamente imersas nele, que tentarão de todas as formas defendê-lo! No filme, toda vez que uma anomalia acontece, ou seja, uma pessoa que está despertando e percebendo que aquilo não é a realidade, as máquinas rapidamente manifestam os Agentes.
Vigiar e Punir
Os Agentes são programas de inteligência artificial avançada que assumem a forma humana. Eles são os mantenedores do sistema e sua principal função é proteger a Matrix de qualquer um e de qualquer coisa que ameace revelar que Matrix é uma falsa realidade — ou qualquer coisa que ameace sua existência. Se em Matrix eles são representados por homens vestindo ternos e usando óculos escuros, na vida real os agentes são bem diferentes — eles nada mais são do que a metáfora para as instituições mantenedoras do sistema.
Segundo Michel Foucault, em seu livro Vigiar e Punir, essas instituições são educadoras e coercitivas: elas não só instruem e moldam o indivíduo como um corpo dócil e obediente para seguir o fluxo, como também o reprimem, seja por exclusão ou punição. Estas instituições são a família, a igreja, a escola e a polícia. No filme, sempre que uma anomalia acontecia e uma pessoa comum plugada na Matrix via isso acontecer, a inteligência artificial rapidamente tomava controle do corpo dela, transformando-a em um agente. Isso é uma metáfora brilhante, demonstrando que, mesmo seus amigos, familiares e as pessoas que mais ama, estão de alguma forma “plugados e conectados a este sistema” — e eles tentarão dissuadi-lo ou o excluirão caso você tenha comportamentos não aceitáveis pelo sistema, transformando-os, assim, em “Agentes“.
“O problema é sempre a escolha”
Não é à toa que o cerne do filme Matrix perpassa a filosofia do existencialismo: a escolha é algo fundamental para o despertar da consciência, e é abordada o tempo todo em Matrix. Desde o princípio, Neo escolheu perseguir o hoax que era Morpheus, uma lenda da internet. Ele escolheu ir à festa para se encontrar com Trinity e, por fim, a maior escolha de todas foi retratada na cena das pílulas.
Morpheus (Laurence Fishburne) oferece a Neo (Keanu Reaves), numa emblemática cena, duas pílulas — cada uma em uma mão. A pílula da esquerda, a Azul, o faria esquecer tudo que havia ocorrido e ele acordaria em sua cama dormindo e voltaria para sua normalidade na Matrix. A pílula da esquerda é vermelha. Ela representa a verdade, o abandono da caverna e a libertação, mas junto dessa liberdade vem o peso da consciência. Sartre diz que somos livres para fazer nossas escolhas, mas somos eternos prisioneiros de suas consequências. Não é sem motivo que existe a famosa frase “Ignorância é uma bênção!”.
“O mel que te farta é o veneno que te mata”
Afinal, o que nos prende à Matrix? O que a torna tão aprazível a ponto de ser preferida cegamente à realidade? No filme, o personagem Cypher (Joe Patoliano) delata Morpheus e seus companheiros da Nabucodonosor, a nave em que eles vivem no mundo real e usam para mandar seu sinal e entrar na Matrix. Para ele, a delação de seus companheiros vale o prêmio de ser reinserido na Matrix e esquecer todas suas lembranças sobre o mundo real fora dela.
Isso é de um simbolismo profundo: o próprio Cypher diz que ignorância é uma bênção e que ele não se importa de estar vivendo uma ilusão, desde que essa ilusão seja melhor do que a cruel realidade em que ele vive. Ele prefere um suculento bife ilusório à gororoba insossa que ele come todos os dias na vida real.
Assim somos nós, nos apegamos aos prazeres dos sentidos, porque eles nos inebriam e nos entorpecem da nossa existência dolorosa, nos fazendo esquecer de que a existência não tem um propósito por si só. Cypher pode parecer um personagem cruel e maquiavélico, mas ele representa, em essência, o que nós somos. Nos apegamos aos mais variados prazeres e os tornamos nossos vícios — e quando digo vícios, não me refiro apenas a pessoas que têm compulsão por bebidas alcoólicas ou substâncias alucinógenas, mas a todo e qualquer estímulo que nos deixe entorpecidos diante da realidade e nos faça querer mais.
Algumas pessoas gostam de comida japonesa, outras de ver televisão, outras de ouvir músicas tristes, outras de exibir a si ou as suas posses a fim de obterem reconhecimento e status, “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. E nessa busca pela realização dos desejos, pela satisfação de prazeres complexos, está o vicio e o sofrimento. O budismo prega que, para se livrar desse sofrimento, é preciso desapegar-se de todas as coisas que lhe dão falsa sensação de posse e que o ligam ao “sistema”. O mel que te farta é o veneno que te mata!
A busca pela satisfação, o desejo, é o que move o sistema e nos torna cativos, nos mantendo prisioneiros na caverna de sombras de Platão. Não foi a primeira vez que uma obra criou uma alegoria para falar sobre o mito da caverna, mas Matrix foi a primeira que conseguiu sintetizar isso de forma esplêndida! Ricky and Morty, outra obra aclamada da cultura pop/ geek da atualidade, também aborda o tema em um episódio.
The Ricky must be crazy é o sexto episódio da segunda temporada e, nele, Ricky e Morty precisam entrar dentro da bateria da Nave espacial para consertá-la. Chegando lá, Morty descobre que há um universo todo dentro da bateria e que, nesse esse universo criado por Ricky, os habitantes sapateiam em uma bugiganga e enviam o excesso de energia para um vulcão que é o núcleo da bateria de sua nave. O episódio coloca em xeque o tema de realidades e sentido da vida ou do universo — sendo que o sentido da existência de todo um planeta e de seus habitantes era apenas mandar energia para a bateria da nave de Rick. Esse é um dos melhores episódios de Rick and Morty e vou fazer um post dedicado apenas a explorá-lo melhor.
Um dos filósofos que propôs uma possível saída para evitar este ciclo foi Sêneca. Ele propunha que o homem sábio fosse indiferente ao prazer, mas o que ele queria dizer com isso? Ao afirmar que o prazer era um infortúnio para a vida feliz, os filósofos dessa corrente, chamada Estoicismo, queriam dizer que, em busca de realizar seus desejos, o homem provava a frustração e o sofrimento e, enquanto houvesse essa eterna busca pelos desejos e vícios, o homem estaria sempre sendo controlado e em sofrimento.
O prazer seriam as motivações complexas. Veja bem: comer, beber, dormir, e rir com amigos são prazeres simples — esses devem ser aprazíveis aos sábios, porque eles não geram o mesmo sofrimento que um prazer complexo. Uma carreira conceituada, a busca pela riqueza em prol de prazeres complexos ou pela fama, a fim de obter status, isso sim gera o sofrimento e a sensação de fracasso. Os estoicos já conheciam, três séculos antes de Cristo, um dos caminhos para não ser prisioneiro de suas ilusões.
Nossa sociedade, nossa Matrix, nos coloca, através das instituições e de seus agentes objetivos e metas complexas, padrões e regras que, às vezes, não escolhemos para nós mesmos, como ser rico, ou se casar, ou ter filhos, ou estar dentro de um padrão estético. O mundo é complexo e, dentro dessa complexidade, o sistema nos pressiona e nos exclui caso não seguirmos suas regras e imergirmos nele. Assim como ratos de laboratório correm em rodinhas para receberem comida, nós trabalhamos, estudamos, viajamos, compramos coisas a fim de receber nossa recompensa. Uma recompensa ilusória de algo que, muitas vezes, não escolhemos para nós, mas nos foi introjetado desde crianças, primeiramente por nosso pais. Vendo a lógica do sistema, percebemos que não é culpa deles, que nós somos peões em um tabuleiro de um jogo muito maior que nós mesmos.
Sejam quais forem suas escolhas, saiba que elas fazem parte da Matrix. Vivendo na Matrix, quanto mais fundo você for no sistema, mais você estará o retroalimentando. Isso não quer dizer que não tenhamos que viver e aproveitar os pequenos prazeres da vida, mas que tenhamos consciência da real necessidade de, como ratos, girarmos a rodinha em busca de comida — e que isso nos faça sempre tomar as escolhas mais conscientes, nos ajudando a evitar nosso sofrimento e o dos outros . Então é isso! Bem-vindos ao deserto do Real!
Análise fecunda e interessante. Parabéns Fernando.
Parabéns Fernando pela sua dedicação no blog , você melhora a cada texto.
Observar e captar os códigos da vida é uma arte!! Parabéns!! prossiga!